sexta-feira, 10 de maio de 2013

ENTREVISTA A ADELINO TIMÓTEO



Artista, poeta, jornalista, filósofo… Parece que a sua procura do sentir, da compreensão do mundo, passa pelo trabalho conjunto com as diferentes disciplinas (como se fosse um cidadão da antiga Grécia), em contraposição com o que a sociedade procura: pessoas profissionais, muito especializadas em matérias muito concretas, embora a realidade seja muito complexa. Considera então necessária uma compreensão conjunta, uma visão global, e um desenvolvimento integral das pessoas para seres, indivíduos contemporâneos realizados?

Adelino Timóteo: Quando era adolescente o gosto/atracção pela arte despontou em mim. Não tinha consciência de que seria cultor de diferentes disciplinas. A devoção pela arte ocorreu-me de uma forma despropositada, desinteressada. Fui praticando a pintura, a escrita de uma forma desinteressada. Havia guerra, miséria, pobreza, em Moçambique. Essas disciplinas tornaram-se um meio de evasão da realidade. A realidade moçambicana feria/fere. A realidade moçambicana embrutece o corpo. A ideia da visão global decorre da sede que sempre me norteou, do conhecimento do outro, da compreensão do outro, para ser eu próprio. O outro é o desconhecido que sempre me atraiu, com os seus mitos, os seus fantasmas. Então, pela arte, pratico a conjura. Afasto os males, exorcizo-os. Afasto os meu fantasmas para estar bem comigo e com todos os outros que me rodeiam.


É escritor, filósofo, poeta… Podemos intuir que é a sua uma poesia  filosófica: o amor, o desamor, a arte de amar, a identidade… O que é para si o Amor e qual é o segredo da arte de amar?

A.T.: Depois de termos partilhado a leitura do Mundo de Sofia, de Jostein Garden, uma amiga minha teve a ideia de construir um blogue para mim. Ela estava laminarmente obcecada com a ideia de que todo o ser humano que interroga a condição humana na vida, entre outros aspectos, é um filósofo. Ela foi entrando em contacto comigo, em conversas, pelos escritos, e assim a brincar cunhou-me de filósofo. Não é que o seja academicamente. Não é o que me preocupa, esse grau, mas como os olhos, os sentidos e o pensamento dela se relaciona  com o meu. De modo que para não magoá-la deixei assim, quando apresentou a ideia final do blogue. Portanto, creio que há nos meus poemas um diálogo filosófico com as vozes fundadoras da poesia. E isso começa com o meu segundo livro, "Viagem à Grécia através da Ilha de Moçambique". Começa com o diálogo com Sócrates, Constantino Kavafis, a aborção do legado literário grego-moçambicano, como contrapontos de origem de duas identidades pelas quais estou umbilicamente ligado. O amor tem sintonia com a filosofia, a sede do conhecimento do outro. E quanto mais amamos, infelizmente, podemos sentir a dor, o desamor, porque o amor faz a liquifação do eu, para formar uma identidade, se quiserem, colectiva, ou por assim dizer, dual (do amante e da amada).
No meu livro "Os segredos da arte de amar" eu encontrei no amor um simulacro para enunciar ao desencanto que me ia na alma, aquilo que passa no meu pai. A vantagem da poesia é essa porque anda ligada ao tempo.
O amor, para mim, é essa convivência/relação dual, pelo qual renunciamos uma parte de nós como seres que podemos ser voltados a nós mesmos, algo que se nos impõe a dar e receber. O amor é a partilha, um sentimento algo que nos sujeita a fazer bem ao outro para ganharmos, incondicionalmente, a plenitude.

Quer na sua vertente literária, quer na artística, o papel da mulher parece ter uma importância muito relevante. Descreve-se assim na sua biografia? Joga a mulher um papel importante na sua construção pessoal?

A.T.: Eu vivo para amar. É como dizia o Eugénio de Andrade, que cito de cor: "Aquele que não ama está morto". Tenho para mim que toda a vitalidade do mundo, bem assim a minha enquanto criador, está associada a mulher. A mulher é um ser esteticamente belo. E a beleza está ao serviço da literatura, que é a arte do belo, numa definição primigénia. Eu penso na mulher como sinónimo da água, ar, terra e fogo. Penso nela como artefacto destas substâncias cosmogónicas, impossível de descurar. Não é que eu seja radical, mas penso que sem a mulher não haveria a minha poesia, não haveria a minha criação. Em suma, eu nada seria, nem estaria agora a responder-vos à pergunta que me colocam. Toda a minha construção deve-se a ela, por isso depois que me premiaram pelo livro "Dos Frutos do Amor e Desamores até à Partida" decidi homenagear a mulher escrevendo um hino, uma espécie de evangelho
adventício no qual me exponho literalmente como sujeito-poético que tanto lhe preza e lhe deve certo atributo. No fim, saiu um livro que chamei "Livro Mulher".


A construção da identidade, segundo você, exige de nós essa nudez que teimosamente camuflamos. Tal como fazemos amor, nascemos todos nus. Como pode construir a própria identidade uma criança que fica com a lembrança do dia que seu pai foi levado da sua casa e nunca mais voltou? Que papel joga aí o amor?

A.T.: Um dia cheguei a uma conclusão nada abissal. Algo nada abismal. Todo o ser humano tem certa propensão para fazer amor, ainda assim menos admite. Todo o ser humano rende-se perante a beleza do nu. Portanto, isso incitou-me a escrever numa linguagem. Porque se camuflamos alguma coisa é porque no fundo, muito dentro do nosso ser, gostamos dessa coisa, vivemo-la no silêncio da nossa solidão.
A construção da minha identidade passa por um exrcício de auto-superação. No fundo, sempre quis ser uma criança normal, que brincava com as outras. A situação da criança que um dia perdeu o pai levou-me a uma profunda meditação sobre quem eu queria ser, como me relacionaria com os outros. Ganhei uma dose de penitência. Se há algo que tem a ver com o fundamento da minha identidade particular é também alguma benevolência, porque o "às" disso tudo é levar os detractores do meu pai  a regenerarem perante o mal que fizeram e, contudo, sem incorrer no erro de retribui-los na mesma medida, como na lei de talião, afastar qualquer reciprocidade de "olho por olho", "dente por dente". O amor joga o papel de redenção. Há muita coisa de que podemos redimir para nos tornarmos melhores amantes, pois se repetimos os males de outrem a violência jamais acaba no mundo. O Homem é que faz do amor um monstro. Ele está ali. Aqui. Não é belicoso. Isso não tem nada a ver com síndrome de estocolmo, mas é isso que chamamos de humanismo. Amor no sentido lato. A concórdia. Sem procurar culpas. Defeitos, ajustes de contas. Isso pode salvar o Mundo. O Animal a que o Homem se tornou, prenhe de inveja e outros males que o destroem, como o tribalismo, racismo, entre outros ismos. Eu poupo a estes semelhantes meus que me causaram dores de se verem como assassinos. Em vez disso, ajudo-os apenas a descobrirem quando e onde começaram com as falhas.

E a identidade colectiva, como se constrói a nação, o país que de repente um dia deixa de ser, tal como sucede nessa grande metáfora que é o seu livro “Nação Pária”?

A.T.: A nação constrói-se sobre os pilares do Estado de Direito. Se a um país falta esse ideal então não se chama país. Podemos nomeá-lo sítio. Lugarejo. Ou o que for que seja. Porque nação na verdadeira acepção do termo reside nos seus órgãos de soberania. Não pode se resumir num punhado de indivíduos que vivem e engordam do erário público, enquanto os súbditos definham, morrem à fome, estão na indigência. No meu país erramos quando pensamos que somos uma nação, pois, no que é verdade, apenas existiu um projecto de nação. A oligarquia que o governa capturou o projecto. Vivemos uma nação enquanto utopia. Dizem que somos todos iguais perante a lei e direitos, mas é mentira, porque num país onde se ouve dizer que somos iguais, alguns da elite política, os de sangue azul, são iguais entre si, e os pobres, os miseráveis, os desamparados, os vulneráveis, conseguem ainda serem mais iguais entre si na sua condição de colectivos deserdados.

Já tem conseguido vender e expor no Canadá, nos Estados Unidos, em muitos locais da Europa e Espanha, mas parece não ter o mesmo sucesso na Ásia. Acha que há mais proximidade com estes países e continentes do que com a Ásia? 

A.T.: Tenho uma grande afinidade cultural com a Europa e Ásia, desde miúdo. Cresci entre negros, brancos e asiáticos. Somos culturalmente um país mestiço. No que toca à Ásia é uma questão de oportunidade, pois conhecemos a vocação cultural dos europeus. Neste aspecto ocorre-me uma grande proximidade com os europeus, porque os asiáticos têm a sua costela de comerciantes, que mais lhes interessa. No ano passado recebi um convite da embaixada da Índia para um festival de poesia que irá ocorrer lá. Tenho para mim que a Ásia é mágica e misteriosa. Vamos ver o que se passará adiante.

Do seu ponto de vista, quais são os contributos da FRELIMO para a construção da identidade moçambicana?

A.T: Primeiro foi a definição da língua portuguesa como língua da unidade nacional, depois o hipotético combate à ideia da tribo, ao racismo. Isso permitiu termos um país quase homogêneo. Há casamentos inter-culturais e inter-raciais, como não havia há 39 anos. É normal hoje a qualquer um frequentar restaurantes, bares, clubes. No passado era diferente. Havia machimbombos -autocarros, para brancos, e os pretos sentavam-se nos últimos assentos. Felizmente, cada um é livre de conviver com quem quiser.

A sua obra, quer como artista, quer como escritor, tem sido reconhecida e premiada internacionalmente, mais é incompreensivelmente silenciado pela crítica em Moçambique, porquê? Considera-se profeta na sua terra? 

A.T.: A crítica literária segue a cartilha, os clichés do partido no poder. Hoje, todo o crítico literário é professor numa universidade pública, onde ganha um ordenado razoável para viver, e tem um carro, alguns carros de afectação, porque pertencem ao Estado. E ali, quem está disposto a por em jogo as regalias, os privilégios em prol de quem até foi filho de um reacionário, um traidor da pátria, como nos catalogavam há vinte anos? Ninguém. Por isso, modelo muito as relações pessoais e mesmo com os críticos. Não espero muito sobre aquilo que elas podem resultar. Sempre vivi com pouco. Sempre me satisfiz com o pouco. Tenho plena consciência desta hostilidade, pois quase nunca encontrei muita gente disposta a prefaciar-me um livro, à excepção de duas ou três pessoas. Para contornar este bloqueio, há três anos tive que recorrer a uma estudiosa brasileira. E o resultado foi aquele 'boom' de "Dos Frutos do Amor": em Moçambique nunca nenhum livro de poesia foi mediatizado como este.  

A Galiza também corre o risco de não ser: perde a língua própria, os costumes, a cultura e agora mesmo as empresas. O que diria aos habitantes da Galiza para eles não deixarem de ser galegos?

A.T.: A língua é o espelho da cultura de um povo. Os galegos devem começar por comunicar-se em galego, veículo de cumplicidades, usos e costumes. Só a língua é que permite o milagre, a benevolência e a estratégia de um galego comum conhecer o outro. De contrário, o galego pode estar condenado a ser uma língua morta, à semelhança do latim. Ora, se morre o galego, a nação galega desaparecerá. Mas para que isso não se passe a união é fundamental. É fundamental a preservação do vínculo de cidadania entre galegos. A globalização, que data do avento das descobertas, fez desaparecer muitas nações índias na América latina.  E os galegos têm que se questionar quem foram e o que pretenderão ser no futuro, sob o perigo de serem engolidos. Fico-me com estas palavras sábias e proverbiais: "As formigas são um povo sem força, todavia no verão preparam a sua comida; os coelhos são um povo débil, contudo fazem a sua casa nas rochas; os gafanhotos não têm rei, contudo marcham todos enfileirados; a lagartixa apanha-se com as mãos, contudo anda nos palácios dos reis”. E são palavras bíblicas, não obstante, de uma actualidade impressionante.

(Entrevista realizada pela turma do FOR - B2. Obrigada à Cristina del Río, María Diéguez e Xela Cabaleiro)

Sem comentários:

Enviar um comentário