Artista,
poeta, jornalista, filósofo… Parece que a sua procura do sentir, da
compreensão do mundo, passa pelo trabalho conjunto com as diferentes
disciplinas (como se fosse um cidadão da antiga Grécia), em contraposição com
o que a sociedade procura: pessoas profissionais, muito especializadas em
matérias muito concretas, embora a realidade seja muito complexa. Considera
então necessária uma compreensão conjunta, uma visão global, e um
desenvolvimento integral das pessoas para seres, indivíduos contemporâneos
realizados?
Adelino Timóteo: Quando era adolescente o
gosto/atracção pela arte despontou em mim. Não tinha consciência de que
seria cultor de diferentes disciplinas. A devoção pela arte ocorreu-me
de uma forma despropositada, desinteressada. Fui praticando a pintura, a
escrita de uma forma desinteressada. Havia guerra, miséria, pobreza, em
Moçambique. Essas disciplinas tornaram-se um meio de evasão da
realidade. A realidade moçambicana feria/fere. A realidade moçambicana
embrutece o corpo. A ideia da visão global decorre da sede que sempre me
norteou, do conhecimento do outro, da compreensão do outro, para ser eu
próprio. O outro é o desconhecido que sempre me atraiu, com os seus
mitos, os seus fantasmas. Então, pela arte, pratico a conjura. Afasto os
males, exorcizo-os. Afasto os meu fantasmas para estar bem comigo e
com todos os outros que me rodeiam.
É escritor, filósofo, poeta… Podemos intuir que é a sua uma poesia filosófica: o amor, o desamor, a arte de
amar, a identidade… O que é para si o Amor e qual é o segredo da arte de amar?
A.T.:
Depois de termos partilhado a leitura do Mundo de Sofia, de Jostein
Garden, uma amiga minha teve a ideia de construir um blogue para mim. Ela
estava laminarmente obcecada com a ideia de que todo o ser humano que
interroga a condição humana na vida, entre outros aspectos, é um
filósofo. Ela foi entrando em contacto comigo, em conversas, pelos
escritos, e assim a brincar cunhou-me de filósofo. Não é que o seja
academicamente. Não é o que me preocupa, esse grau, mas como os olhos,
os sentidos e o pensamento dela se relaciona com o meu. De modo que
para não magoá-la deixei assim, quando apresentou a ideia final do
blogue. Portanto, creio que há nos meus poemas um diálogo filosófico com
as vozes fundadoras da poesia. E isso começa com o meu segundo livro,
"Viagem à Grécia através da Ilha de Moçambique". Começa com o diálogo
com Sócrates, Constantino Kavafis, a aborção do legado literário
grego-moçambicano, como contrapontos de origem de duas identidades pelas
quais estou umbilicamente ligado. O amor tem sintonia com a filosofia, a
sede do conhecimento do outro. E quanto mais amamos, infelizmente,
podemos sentir a dor, o desamor, porque o amor faz a liquifação do eu,
para formar uma identidade, se quiserem, colectiva, ou por assim dizer,
dual (do amante e da amada).
No meu
livro "Os segredos da arte de amar" eu encontrei no amor um simulacro
para enunciar ao desencanto que me ia na alma, aquilo que passa no meu
pai. A vantagem da poesia é essa porque anda ligada ao tempo.
O
amor, para mim, é essa convivência/relação dual, pelo qual renunciamos
uma parte de nós como seres que podemos ser voltados a nós mesmos, algo
que se nos impõe a dar e receber. O amor é a partilha, um sentimento
algo que nos sujeita a fazer bem ao outro para ganharmos,
incondicionalmente, a plenitude.
Quer na sua vertente literária, quer na artística, o papel da mulher parece ter uma importância
muito relevante. Descreve-se assim na sua biografia? Joga a mulher um papel
importante na sua construção pessoal?
A.T.:
Eu vivo para amar. É como dizia o Eugénio de Andrade, que cito de cor:
"Aquele que não ama está morto". Tenho para mim que toda a vitalidade do
mundo, bem assim a minha enquanto criador, está associada a mulher. A
mulher é um ser esteticamente belo. E a beleza está ao serviço da
literatura, que é a arte do belo, numa definição primigénia. Eu penso na
mulher como sinónimo da água, ar, terra e fogo. Penso nela como
artefacto destas substâncias cosmogónicas, impossível de descurar. Não é
que eu seja radical, mas penso que sem a mulher não haveria a minha
poesia, não haveria a minha criação. Em suma, eu nada seria, nem estaria
agora a responder-vos à pergunta que me colocam. Toda a minha
construção deve-se a ela, por isso depois que me premiaram pelo livro
"Dos Frutos do Amor e Desamores até à Partida" decidi homenagear a
mulher escrevendo um hino, uma espécie de evangelho
adventício no qual me exponho literalmente
como sujeito-poético que tanto lhe preza e lhe deve certo atributo. No
fim, saiu um livro que chamei "Livro Mulher".
A
construção da identidade, segundo você, exige de nós essa nudez que
teimosamente camuflamos. Tal como fazemos amor, nascemos todos nus. Como pode
construir a própria identidade uma criança que fica com a lembrança do dia que
seu pai foi levado da sua casa e nunca mais voltou? Que papel joga aí o amor?
A.T.: Um dia cheguei a uma conclusão
nada abissal. Algo nada abismal. Todo o ser humano tem certa propensão
para fazer amor, ainda assim menos admite. Todo o ser humano rende-se
perante a beleza do nu. Portanto, isso incitou-me a escrever numa
linguagem. Porque se camuflamos alguma coisa é porque no fundo, muito
dentro do nosso ser, gostamos dessa coisa, vivemo-la no silêncio da
nossa solidão.
A construção da minha
identidade passa por um exrcício de auto-superação. No fundo, sempre
quis ser uma criança normal, que brincava com as outras. A situação da
criança que um dia perdeu o pai levou-me a uma profunda meditação sobre
quem eu queria ser, como me relacionaria com os outros. Ganhei uma dose
de penitência. Se há algo que tem a ver com o fundamento da minha
identidade particular é também alguma benevolência, porque o "às" disso
tudo é levar os detractores do meu pai a regenerarem perante o mal que
fizeram e, contudo, sem incorrer no erro de retribui-los na mesma
medida, como na lei de talião, afastar qualquer reciprocidade de "olho
por olho", "dente por dente". O amor joga o papel de redenção. Há
muita coisa de que podemos redimir para nos tornarmos melhores amantes,
pois se repetimos os males de outrem a violência jamais acaba no mundo.
O Homem é que faz do amor um monstro. Ele está ali. Aqui. Não é
belicoso. Isso não tem nada a ver com síndrome de estocolmo, mas é isso
que chamamos de humanismo. Amor no sentido lato. A concórdia. Sem
procurar culpas. Defeitos, ajustes de contas. Isso pode salvar o Mundo. O
Animal a que o Homem se tornou, prenhe de inveja e outros males que o
destroem, como o tribalismo, racismo, entre outros ismos. Eu poupo a
estes semelhantes meus que me causaram dores de se verem como
assassinos. Em vez disso, ajudo-os apenas a descobrirem quando e
onde começaram com as falhas.
E a
identidade colectiva, como se constrói a nação, o país que de repente um dia
deixa de ser, tal como sucede nessa grande metáfora que é o seu livro “Nação
Pária”?
A.T.: A nação constrói-se
sobre os pilares do Estado de Direito. Se a um país falta esse ideal
então não se chama país. Podemos nomeá-lo sítio. Lugarejo. Ou o que for
que seja. Porque nação na verdadeira acepção do termo reside nos seus
órgãos de soberania. Não pode se resumir num punhado de indivíduos que
vivem e engordam do erário público, enquanto os súbditos definham,
morrem à fome, estão na indigência. No meu país erramos quando pensamos
que somos uma nação, pois, no que é verdade, apenas existiu um projecto
de nação. A oligarquia que o governa capturou o projecto. Vivemos uma
nação enquanto utopia. Dizem que somos todos iguais perante a lei e
direitos, mas é mentira, porque num país onde se ouve dizer que somos
iguais, alguns da elite política, os de sangue azul, são iguais entre
si, e os pobres, os miseráveis, os desamparados, os vulneráveis,
conseguem ainda serem mais iguais entre si na sua condição de colectivos
deserdados.
Já
tem conseguido vender e expor no Canadá, nos Estados Unidos, em muitos locais
da Europa e Espanha, mas parece não ter o mesmo sucesso na Ásia. Acha que há
mais proximidade com estes países e continentes do que com a Ásia?
A.T.:
Tenho uma grande afinidade cultural com a Europa e Ásia, desde miúdo.
Cresci entre negros, brancos e asiáticos. Somos culturalmente um país
mestiço. No que toca à Ásia é uma questão de oportunidade, pois
conhecemos a vocação cultural dos europeus. Neste aspecto ocorre-me uma
grande proximidade com os europeus, porque os asiáticos têm a sua
costela de comerciantes, que mais lhes interessa. No ano passado recebi
um convite da embaixada da Índia para um festival de poesia que irá
ocorrer lá. Tenho para mim que a Ásia é mágica e misteriosa. Vamos ver o
que se passará adiante.
Do
seu ponto de vista, quais são os contributos da FRELIMO para a construção da
identidade moçambicana?
A.T: Primeiro foi a definição da
língua portuguesa como língua da unidade nacional, depois o hipotético
combate à ideia da tribo, ao racismo. Isso permitiu termos um país quase
homogêneo. Há casamentos inter-culturais e inter-raciais, como não
havia há 39 anos. É normal hoje a qualquer um frequentar restaurantes,
bares, clubes. No passado era diferente. Havia machimbombos -autocarros,
para brancos, e os pretos sentavam-se nos últimos assentos. Felizmente,
cada um é livre de conviver com quem quiser.
A
sua obra, quer como artista, quer como escritor, tem sido reconhecida e premiada
internacionalmente, mais é incompreensivelmente silenciado pela crítica em
Moçambique, porquê? Considera-se profeta na sua terra?
A.T.: A crítica literária segue a cartilha, os clichés do partido no poder.
Hoje, todo o crítico literário é professor numa universidade pública,
onde ganha um ordenado razoável para viver, e tem um carro, alguns
carros de afectação, porque pertencem ao Estado. E ali, quem está
disposto a por em jogo as regalias, os privilégios em prol de quem até
foi filho de um reacionário, um traidor da pátria, como nos catalogavam
há vinte anos? Ninguém. Por isso, modelo muito as relações pessoais e
mesmo com os críticos. Não espero muito sobre aquilo que elas podem
resultar. Sempre vivi com pouco. Sempre me satisfiz com o pouco. Tenho
plena consciência desta hostilidade, pois quase nunca encontrei muita
gente disposta a prefaciar-me um livro, à excepção de duas ou três
pessoas. Para contornar este bloqueio, há três anos tive que recorrer a
uma estudiosa brasileira. E o resultado foi aquele 'boom' de "Dos Frutos
do Amor": em Moçambique nunca nenhum livro de poesia foi mediatizado
como este.
A Galiza também corre o risco de
não ser: perde a língua própria, os costumes, a cultura e agora mesmo as
empresas. O que diria aos habitantes da Galiza para eles não deixarem de ser
galegos?
A.T.: A língua é o espelho
da cultura de um povo. Os galegos devem começar por comunicar-se em
galego, veículo de cumplicidades, usos e costumes. Só a língua é que
permite o milagre, a benevolência e a estratégia de um galego comum
conhecer o outro. De contrário, o galego pode estar condenado a ser uma
língua morta, à semelhança do latim. Ora, se morre o galego, a nação
galega desaparecerá. Mas para que isso não se passe a união é
fundamental. É fundamental a preservação do vínculo de cidadania entre
galegos. A globalização, que data do avento das descobertas, fez
desaparecer muitas nações índias na América latina. E os galegos têm
que se questionar quem foram e o que pretenderão ser no futuro, sob o
perigo de serem engolidos. Fico-me com estas palavras sábias e
proverbiais: "As formigas são um povo sem
força, todavia no verão preparam a sua comida; os coelhos são um
povo débil, contudo fazem a sua casa nas rochas; os gafanhotos não
têm rei, contudo marcham todos enfileirados; a lagartixa apanha-se
com as mãos, contudo anda nos palácios dos reis”. E são palavras
bíblicas, não obstante, de uma actualidade impressionante.
(Entrevista realizada pela turma do FOR - B2. Obrigada à Cristina del Río, María Diéguez e Xela Cabaleiro)